terça-feira, março 14, 2006

Das palavras de Jabor...


‘Brokeback’ é um filme sobre heróis machos

Eu não queria ver o filme “Segredo de Brokeback Mountain”. Não queria. Ver filme de viados , eu? (Escrevo viado porque, como disse Millôr, quem escreve “veado” é viado ). Muito bem; eu resistia à ideia, mais ou menos como o Larry David (o roteirista de “Seinfeld”) disse, num artigo engraçadíssimo, que tinha medo de virar gay se ficasse emocionado.

O viado sempre encarnou a ambigüidade de nossos sentimentos. Claro que, hoje, os civilizados todos dizem que “tudo bem, que são contra a homofobia” e todo o bullshit costumeiro. Eu mesmo já fiz filmes em que viados são protagonistas, em que o ator principal escolhe o homosexualismo no final (“Toda nudez será castigada”), já filmei travesti em “Eu te amo” e em “Eu sei que vou te amar”, além da biba louca do “O casamento”, em que o grande ator André Valli dá um show inesquecível. Em todos os meus filmes há uma boneca ativa e digna. E, no entanto, eu não queria ver o tal filme do Ang Lee, apelidado pelos machistas finos de “Chapada dos Viadeiros”.

Minhas razões eram mais discretas, intelectuais: “Ah... porque o Ang Lee é um cineasta mediano, ah... porque será mais um filme politicamente correto, onde o amor de dois caubóis é justificado romanticamente... Vou fazer o que no cinema? Ver mais um panfletinho que ensina que os gays devem ser compreendidos em seu ”desvio“? Não. Não vou”, pensei.

Aliás, eu sou do tempo em que os viados apanhavam na cara em plena rua. Havia pouquíssimos gays declarados no Brasil. No Rio, havia o Murilinho... cantor de fox em boates, havia o Clovis Bornay e poucos outros... O viado passava na rua sob os rosnados dos boçais prontos para lhes tirar sangue. E, no anonimato, enxameavam os pobres “pederastas”, de terno e gravata, pais de família se esgueirando nas esquinas, nas noites escuras, em busca de satisfação.

Mais tarde, com o tempo, surgiram as “bichas loucas”, que se assumiam com um toque de autoflagelação, de autoderrisão, caricaturas da mãe odiada e amada, que berravam e desfilavam nos carnavais num freje humorístico, que até hoje alimenta nossos shows na TV. A “bicha” virou uma personagem clássica do humor, como os palhaços e os bacalhaus de circo. E tudo bem... são engraçados mesmo.

Depois, com os direitos civis dos anos 60, surgiu a gay power , com homossexuais fortes e de bigode, malhados, cheios de orgulho. A viadagem virou um poder político importante, claro, mas até meio sério demais, aspirando a uma “normalidade” que contrariava sua “missão” trangressiva que tanto nos acalmava. Como disse Paulo Francis um dia, sacaneando-os: “Se esses caras querem todos os direitos e deveres dos caretas como nós, qual é então a vantagem de ser viado ?”

Em suma, por mais que “aceitemos” os gays, eles sempre foram uma fonte de angústia, pois atrapalham nosso sossego, nossa identidade “clara”. O gay é duplo, é dois, o viado tem algo de centauro, de ameaçador para a unicidade do desejo. A bicha louca ou o travesti, a biba doida ou o perobo , o boy , o puto, a santa, a tia, a paca, todos eles nos tranqüilizavam com suas caricaturas auto-excludentes. Já o gay sério inquieta. O gay banqueiro, o gay de terno, o gay forte, o gay caubói são muito próximos de nos, a diferença fica mínima.

Por isso, eu não queria ver o tal filme dos caubóis. Como? Caubói de mãos dadas, dando beijos românticos, com tristes rostos diante do impossível? Não. Eu, não. Mas, aí, por falta de programa, “distraidamente”... (aí, hein, santa?...) fui ver o filme. E meu susto foi bem outro. O filme não me pedia aprovação alguma para o homossexualismo, o filme não demandava minha solidariedade. Não. Trata-se de um filme sobre o império profundo do desejo e não uma narração simpática de um amor “desviante”. O filmes se impõe assustadoramente. Os dois caubóis jovens e fortes se amam com um tesão incontido e são tomados por uma paixão que poucas vezes vi num filme, hetero ou não. Foi preciso um chinês culto para fazer isso. Americano não agüentava. Nem europeu, que ia ficar filosofando. “Brokeback” é imperioso, realista, sem frescuras. Eu fiquei chocado dentro do cinema, quando os dois começam a transar subitamente, se beijando na boca com a fome ancestral vinda do fundo do corpo. O filme não demandava a minha compreensão. Eu é que tinha de pedir compreensão aos autores do filme, eu é que tive de me adaptar à enorme coragem da história, do Ang Lee. Eu é que precisava de apoio dentro do cinema, flagrado, ali, desamparado no meu machismo “tolerante”. Eu é que era o careta, eu é que era o viado no cinema, e eles, os machos corajosos, se desejando não como pederastas passivos ou ativos, mas como dois homens sólidos, belos e corajosos, entre os quais um desejo milenar explodiu. Não há no filme nada de gay, no sentido alegre, ou paródico ou humorístico do termo. Ninguém está ali para curtir uma boa perversão. Não. Trata-se de um filme de violento e poderoso amor. É dos mais emocionantes relatos de uma profunda entrega entre dois seres, homos ou heteros. Acaba em tragédia, claro, mas não são “vítimas da sociedade”. Não. Viveram acima de nós todos porque viveram um amor corajosíssimo e profundo. Há qualquer coisa de épico na história, muito mais que romântica. Há um heroísmo épico, grego, como entre Aquiles e Pátroclo na “Ilíada”, algo desse nível. O filme não é importante pela forma, linguagem ou coisas assim. Não. Ele é muito bom por ser uma reflexão sobre a fome que nos move para os outros, sobre a pulsação pura de uma animalidade dominante, que há muito tempo não vemos no cinema e na literatura, nesses tempos de sexo de mercado e de amorezinhos narcisistas.

Merece os Oscars que ganhou. Este filme amplia a visão sobre nossa sexualidade.